“O prazer da comida é o único que, desfrutado com moderação, não acaba por cansar”

Brillat-Savarin


sexta-feira, 25 de março de 2011

Aya Carnaxide – Continua a ser o melhor



A minha primeira aproximação à cozinha japonesa foi há muitos, muitos anos, durante umas férias em São Paulo. Fiquei em casa da mãe de uma amiga minha e, durante 23 dias, acordava, religiosamente, às 7 da manhã, ao toque do gongo, a marcar o inicio da oração, frente ao altar do Buda.
Goiiiiimnnnnnggggg!!!! Goiiiinnnnngggg!!!! Goiiiiiinnnnngggg!!!! Dia após dia, dava um salto na cama ao som desse  forçado despertador. Assistia, depois, à atenção com que a dona da casa, uma idosa de 83 anos, lia o jornal em versão nipónica e me traduzia em voz alta os carateres japoneses.
Duas vezes por semana, “fazia feira”, com a ajuda da empregada que lhe empurrava o carrinho de compras. Mas era ela que, de banca em banca, procurava a melhor fruta e os legumes mais frescos. Regressada da feira, assim como no inicio de qualquer refeição, uma parte da comida, arroz e fruta,  era colocada no altar do Buda.  
À mesa, os típicos pratos brasileiros, mas a velha senhora mantinha-se fiel ao sushi/shashimi , que chegava minutos antes das refeições em caixinhas take way e rapidamente transferido para a loiça caseira. Eu olhava com desconfiança para aquele peixe crú e a minha inabilidade de então  no manuseamento do hashi - os pauzinhos - servia de desculpa para optar pela versão brasileira da refeição.
Vencido o preconceito do “pexinho”,  e adquirida a destreza de mãos, tornei-me fã, mas não especialista da comida japonesa;  e, pecadora me confesso, caio muitas vezes na tipica tentação de acompanhar tudo com o molho de soja o que deixa desolado qualquer bom sushiman.
Era o caso de Yoshitake, que me prendava, ao balcão do Aya de Carnaxide, com pratos de apresentação e sabores delicados. Nunca soube os nomes das iguarias, mas, domingo após domingo, lá ía eu devorar as surpresas do mestre. Pratinho atrás de pratinho, cada um com o seu tempero ou molho, e Yoshitake, em voz invariavelmente suave,  a deixar a indicação expressa de que “não é para comer com shoyu”. Tinha toda a razão. A soja mascara os sabores. É assim como ir ao Macdonalds: sabe tudo ao mesmo. Por isso, quando lhe era permitido, Yoshitake tentava educar o palato dos clientes
Os peixinhos,  sempre fresquinhos. O atum,  das melhores procedências.  A apresentação dos pratos, verdadeiras obras de arte! Tudo, menos carapau e sardinhas, que, já se sabe, não como. Nem... lagosta viva! Nem pensar! Essa nem em banho de soja! Estar a comer a barriga do bicho enquanto ele mexe a cauda e as pernas...NHEC! É emoção demasiado forte e só me poderia provocar uma “doença de nervos” pela certa!!!
Apesar da morte de Yoshitake e de algumas deserções, o Aya tenta manter-se como uma referência entre os restaurante japoneses. Sem concessões.  Aqui  não há sushi com queijo filadéfia ou maioneses, nem com mostarda, tão do agrado da clientela e dos restaurantes da moda e dos chineses que se mascararam de japoneses. Não. Pelo menos no Aya de Carnaxide, que é o que frequento mais assíduamente, mantém-se fieis aos ensinamentos do Mestre.
A primeira vez que fui ao Aya de Carnaxide, escolhi um lugar ao balcão, mas, nesse Domingo, Yoshitake não estava. Insisti na ideia de me servirem um menu surpresa. Do outro lado, uma voz brasileira, avisa-me que era só o número três, sugerindo-me que eu me deslocasse uns quantos lugares para ser atendida pelo número dois. Recusei. Não conhecia nenhum dos sushiman e tamanha dose de humildade só podia ser bom sinal. A minha intuição estava certa e tive uma interessante e excelente refeição que Fagner Bratfish me preparou com esmero, subtileza e boa técnica.
Hoje, este discipulo de Yoshitake ocupa o lugar do Meste. É ele que chefia o Aya de Carnaxide e eu continuo a pedir-lhe o que pedia a Yohsitake: que me surpreenda.
Sublime, o pargo com ovas de taínha seca que lá comi há duas semanas, ou, noutra variante, o pargo com molho de ameixa seca que experimentei da última vez. Sem shoyu, se faz favor! Sim chefe.


Para satisfazer os meus gostos mais básicos do molho de soja, vale um pequeno  sashimi clássico.


Imperdível, o sushi antigo de salmão e lima. Divino.


E num daqueles dias em que o estomago parece um saco roto, ainda há espaço para uma tempura de camarão e legumes. O crocante leve . Finissimo. Uma deliiiciaa!


Restaurante Aya
Rua Aníbal Bettencourt 71
2790-225 Carnaxide
Tel. 214181684

quarta-feira, 16 de março de 2011

Eleven - Sinfonia em onze andamentos

Leio, algures, que o Eleven apresentava como principal novidade na carta um novo menu surpresa:
Eleven em 11 Pedaços – Um novo menu surpresa para os jantares oferece uma viagem pela cozinha de Joachim Koerper em 11 momentos, descobrindo pratos da estação e alguns clássicos que o Chefe foi criando ao longo da sua carreira. Este menu, a 44 euros, renova-se semanalmente.
Fico curiosa, apesar de desconfiada. É que das quatro ou cinco vezes que fui a este restaurante, saí sempre defraudada com as experiências.
Nunca mais esqueço, por exemplo, a primeira vez que lá jantei, já o Eleven tinha conquistado uma estrela Michelin. Foi pedido o menu de trufas. Sem história, não me ficou na memória dos paladares. Mas, lembro-me bem como terminou esse jantar.
Sobremesa composta por um petit gateau e gelado de trufas, o meu espanto foi enorme quando enterro a colher no bolo e descubro uma massa seca. Completamente cozida, sem uma única gotinha de chocolate. Podiam chamar-lhe um queque, ou qualquer coisa do género, mas petit gateau é que não! Bolo seco no meu prato, e também no prato da frente!
Chamado o chefe de sala, e dada a nota da secura dos bolos, que um azar acontece, até aos melhores, a resposta foi rápida e desconcertante: - “tem graça, já é a quinta reclamação, esta noite!”.
Fiquei atónita. Tem graça? Quinta reclamação? E não acontece nada? E, confessa-se assim, de pronto, o erro, sem emenda?  E não se passou mesmo mais nada. A sobremesa não foi substituida. O valor dos menus, cobrado na integra. Não achei graça nenhuma, não senhora e...e se eu fosse inspectora do Guia Michelin o Eleven tinha perdido a estrela ali.
Fui lá mais duas ou três vezes, empurrada por compromissos sociais e tive sempre a mesma sensação. O serviço da sala não acompanhava a cozinha de Koerper e o chefe cozinheiro também não deveria ligar muito ao que se passava nas mesas. Por isso, foi sem surpresa que vi desaparecer a estrela.
Mas o meu espírito cristão obriga-se a dar várias oportunidades, e tinha curiosidade em ver como o Eleven estava a reagir à despromoção da biblia vermelha.
A contrariar os sinais da crise, numa destas sextas-feiras à noite, percorro a minha lista de restaurantes, sem sucesso na reserva para jantar;  o Eleven surge-me como quinta opção, mas, também ele, com lotação esgotada.
Insisto, com mais sorte, na semana seguinte. Peço mesa à janela.
Quatro variedades de pão à escolha. Bom pão, embora ganhasse se os pãezinhos fossem servidos quentinhos. Uma rodela de manteiga que aqui ainda não se renderam ao couvert de azeite.
Consulto a carta, num exercício gratuito, decidida que estava a optar pelo Menu de 11 pedaços. Venham eles, que a degustação apresenta-se de surpresa!
Primeira ronda: um carpaccio de tamboril, um tártaro de salmão, uma almondega de cogumelos trufados e, se a memória não me atraiçoa, lombo de porco com cubinhos de ananás.
O tamboril, macio, fresquissimo, em azeite,  a mostrar como pode ser boa opção em carpaccio. O salmão a vencer com a redução de laranja. Delicioso, o sonho de cogumelos aqui batizado de almondega. A carne, boa, mas a desiquilibrar a harmonia do prato.
Começo a baixar a guarda quando me surge a segunda triolgia: creme de abóbora, garoupa em molho de salsa com legumes de inverno e risotto de bouillabaisse com camarão e espuma de crustáceos.
Menos conseguido o creme de abóbora que para o meu palato dispensam-se as natas; muito bem tratada a garoupa, suada no molho de salsa; interessante o risotto feito com o caldo de bouillabaisse, ensopado feito com vários peixes, uma espécie de caldeirada tipica da zona de Marselha. No entando, aqui, dominou o leite de coco abafando a maresia.
O pedaço seguinte funcionou como prato principal só que, para mal dos meus pecados, tinha-me esquecido de avisar que cordeiro, borrego ou cabrito estão fora da minha lista de alimentos. Aviso obrigatório, mandaria a prudência, já que são as carnes mais utilizadas na alta cozinha. Meio atrapalhado, com o meu desconsolo perante o cordeiro, o empregado prontifica-se à substituição, sugerindo-me lombo de pato. Com a mesma guarnição, o marreco cumpriu a função.
No prato da frente, mantem-se o carré de cordeiro, com relatos elogiosos.
Na trilogia doce, foi apresentada uma irresistivel mousse de manga caramelizada; creme brulée com mel de alecrim e  gelado de amendoa,  o creme em textura de tigelada, a ganhar vida na conjugação com o mel; e ainda um brownie de chocolate a garantir o sucesso da composição.
Fiquei quase reconciliada com este restaurante e, ainda por cima tem a segunda melhor vista de Lisboa.
Numa carta de vinhos com preços altos, um Soberana tinto, a 40 euros, mostrou ser uma agradável surpresa. Apesar de estruturado, não se revelou pesado.
Joachim Koerper vale a estrela, haja maior inter-acção entre a cozinha e a sala. O serviço ainda a precisar de afinações, mas, na ligação entre a recepção e as mesas, Florbela a sobressair na eficência e atenção aos pormenores.
Em tempos de crise, o Eleven a mostrar como se pode ser competitivo e sensato, sem perder pergaminhos. Eu conto voltar. Terei mais onze razões para o tira-teimas...

segunda-feira, 14 de março de 2011

Quando uma cebola pesa no bolso!

Mesmo os mais distraídos já terão notado que este blog não é  de crítica gastronómica,  que essa fica para os profissionais (já são poucos, infelizmente), mas de impressões e experiências à mesa. E estar à mesa, não são só sabores e cheiros. Em casa ou no restaurante, estar à mesa é o centro do universo.
Com essa permissa, uma ida a um restaurante é muito mais do que comer. É a companhia, são os ambientes, a localização, a decoração e muitos mais pequenos pormenores. São as histórias de que se fazem os momentos da vida. E sinto muitas vezes, nos relatos críticos dos restaurantes, a falta desse lado impressivo. Em nome do rigor descritivo com que se apresentam as cartas perdem-se os prazeres e as emoções.
Nunca mais esqueço o melhor prego que alguma vez comi numa pequena tasca em Ponta Delgada de que ingratamente não retive o nome. Nem o melhor goulash húngaro devorado tardiamente, num restaurante familiar em Nürburgring.  Vou querer repetir a sopa de alcachofras com brioche folhado de cogumelos, divino clássico de Guy Savoy.  Mas, cem anos que viva, também não vou esquecer, a história do gratinado de cebola,  que uma noite me serviu de entrada para o jantar Alain Passard,  no L’Arpège.
Tinha estado,  na noite anterior, no Balzac de Pierre Gagnaire, onde, num ambiente caloroso, apreciei um memorável menu de degustação. Gagnaire veio à mesa no início. Afável, manteve uma breve conversa,  gesto que me leva a pensar que,  ao regressar à banca da cozinha, foi compondo cada um dos pratos,  “fazendo o filme” de cada um dos clientes destinatários.  Certo é que emprestou muita emoção a esse jantar. Emoção e...calorias, claro. Nove pratos depois, obriguei-me, na gélida noite, a percorrer a pé os 4 quilómetros que me distanciavam do hotel, mas ainda assim insuficientes para manter o equilibrio na balança.
Por isso, no dia seguinte, pedia-se parcimónia com o garfo.  Feliz por a reserva dessa noite ser numa cozinha centrada nos vegetais, consulto a carta, obviamente sem acesso à sempre dolorosa coluna do lado direito. Não me lembro do prato principal, apenas que, de entrada, a minha escolha recaiu num Gratin d'oignon doux des Cévennes "Saint-André".  Gratinado de cebolas doces de Cévennes. Um prato que, fico a saber mais tarde,fazia parte do almoço de domingo,  em casa da avó de Alain Passard. Desta vez , era proposto com trufas pretas. Suave, mas vulgar.
É já no hotel que me sinto à beira de uma congestão. Espreito para a factura do jantar, abandonada em cima da cómoda,  e não consigo conter uma horrorizada exclamação quando me fixo naquela parcela: cem euros?! Por meia cebola branca, cortada em rodelas quase transparentes,  e duas finíssimas lascas de trufas?! Cem euros?!!!
“Mas não é uma cebola qualquer” – responde-me a voz que me consola, fazendo-me notar, em tom divertido,  que cebolas de Cévennes e, ainda por cima "Saint-André",  são produzidas numa zona de origem controlada e que era preciso contar com as trufas.
No dia seguinte, percorri meia cidade de Paris à procura das ditas cebolas de ouro. Depois de muitas tentativas, acabei por as descobrir,  numa pequena mercearia,  perto do Forum des Halles: 5, 90 euros...o quilo! Meses depois, já em Lisboa, no Continente: 2 euros e meio!!! E o prato foi reproduzido cá em casa, com grande sucesso! Com trufas e tudo...
Uma história que recupero,  quando,  um destes dias, descobri este caderno de receitas de cebolas de Cévennes.
Pena que o Continente tenha, entretanto, substituido as cebolas francesas por fornecimento espanhol. Continuam a ser cebolas doces...mas,  não é a mesma coisa.