“O prazer da comida é o único que, desfrutado com moderação, não acaba por cansar”

Brillat-Savarin


sábado, 8 de janeiro de 2011

Gambrinus – O que é bom, é bom é...

Por onde começar neste início de ano? Pela tradição, pois claro! Ano Novo, comidas de sempre.

Se é assim em casa, porque iria fazer diferente, na escolha do restaurante?

Sobrevivi aos sonhos de manga em calda de poejos, obrigatórios cá em casa, já há alguns anos, mais os sonhos tradicionais de abóbora; sobrevivi às azevias, filhoses e coscorões e deliciei-me com o Bolo Rei da Garrett e com o pudim Abade de Priscos, em dose dupla. Não resisti aos mexidos, nem à ambrósia.

Saboreei o bacalhau da consoada com batatas a saber a batatas, que mão amiga me fez chegar directamente da quinta; o perú, que cá em casa nunca sobra, de tal forma ele fica macio e suculento, com um recheio de chorar por mais; as perdizes feitas à Convento de Alcântara capazes de converterem os mais descrentes; o faisão com farofa de pão alentejano, alecrim e frutos secos, irresistível; o Pato Real assado, com azeitonas e arroz selvagem, a merecer palmas; divina, a sopa Valéry Giscard d’Estaing, numa receita de Paul Bocuse, seguida à risca, e que não envergonharia o autor, com trufas negras, fresquinhas, trazidas directamente de Paris por outra mão amiga; fui contribuindo com a focaccia que fiz e repeti vezes sem conta...

Um põe-mesa-tira-mesa sem intervalo,  entre o Natal e o Ano Novo. Com casa cheia e sem empregada, que aproveitou a quadra para... fazer um cruzeiro! Verdade! Croácia, Turquia, Veneza...

E eu, voluntária à força, no papel de assistente de cozinha e entre tachos e toalhas, sem dar descanso à esfregona e ao aspirador.  No final de todo este trabalho (es)forçado, sobrou apenas a censura horrorizada da minha manicura porque, no pecado da gula, esse,  fui gerindo, sem grandes gritos nem apitos, na hora de subir para a balança...

Ora, depois de todo este lufa-lufa, já só queria sentar-me a uma mesa para um jantar a dois. Uma comidinha simples, servida com delicadeza, sem ter de pensar depois em arrumar pratos, copos e talheres. Opção sempre difícil num Domingo à noite, em Lisboa. E qual grávida, de desejos, só me apetecia... uma singela alheira de caça! A cereja no bolo, a servir de prémio de consolação.

Uma alheira, das verdadeiras, com muita chicha, com grelos, ovo estrelado e batatas fritas. UAU!!!  Tudo a que tenho direito, que a balança pode estar avariada e este blog é vedado a nutricionistas...

Bom! Não conheço muitos restaurantes em Lisboa que possam corresponder ao pedido. Há o Cimas, antigo English Bar, no Estoril, e há o Gambrinus... aquele onde se dá a ideia de que o desejo do cliente se transforma em realidade num simples estalar de dedos. Cimas,  encerrado ao Domingo. Fica para a próxima. Ala, que se faz tarde, para as Portas de Santo Antão.

Sem reserva, restaurante cheio (!!!), sou encaminhada para a sala interior, ainda assim recebida com aquela elegância calorosa que, sem afectações, nos faz sentir de bem com a vida.

Finjo que consulto a carta, como quem se quer enganar a si própria, mas acabo por confirmar ao que ía: A-LHEI-RA, de Mirandela, como se pode ler no Menu! Nem mais! Corrijo: antes, umas gambas à Malaguenha, para partilhar e picar. Saborosas, com a alma feita de pimentos em pedacinhos e malaguetas q.b.

Na mesa, a rirem-se para mim, umas finas torradas em pão de centeio com manteiga. Uma pede outra e eu não resisto. E a dose é prontamente reforçada sem que ninguém o peça.

Finalmente, a alheira. E porque nenhum prato vem feito da cozinha, valorizando-se aqui o clássico serviço de sala, o empratamento é feito à vista do cliente, que tem assim sempre hipótese de recusar ou pedir mais disto ou daquilo. No meu caso, mais grelos que batatas: palitões grossos, sujeitos a uma prévia cozedura, antes de serem fritos. Peço apenas um. E é isso que me colocam no prato. Uma batata e não duas, nem três. Uma só, que foi o que pedi, ainda que fique a invejar o prato da frente, bem mais balanceado entre os grelos e a batata frita (atuxadinho!!!)...

A alheira, tamanho  XXL.  Sequinha, com fritura a preceito. No recheio, quantidade generosa de carne, apenas com as migas de pão necessárias. Bem diferente daquelas pastas que vemos por aí no mercado. Perfeita, com a tradicional companhia do ovo estrelado. Consolei-me!

Falar do Gambrinus foi sempre falar de um luxo inacessível, mas o certo é que os preços praticados estão ao nível dos restaurantes caros de Lisboa, ainda que eu não tenha tido acesso à coluna dos cifrões,  já que aqui continua a praticar-se a velha regra de apresentar o menu às senhoras sem essa incómoda coluna da direita.

No remate, apenas o café, mas graças à mesa do lado que não dispensou o ex-libris da casa, fiquei fascinada a assistir a uma aula ao vivo de crepes suzette. Já praticamente desaparecida dos restaurantes,  a arte de flamejar  ainda se pratica com mestria neste espaço de tradição e boa comida.

Tão boa que até se perdoa a vizinhança de uns patos bravos que acompanham toda a refeição com sucessivas garrafas de Moet&Chandon;  no demais, empresários, gestores, políticos e advogados, continuam a ser assíduos, para apreciar a cozinha tradicional, que vive dos bons produtos e o serviço elegante e discreto, muito atento a todos os detalhes. A decoração é a que sempre conheci, com as paredes forradas a madeira. Mas, como respondeu Paul Bocuse, um dos Papas da cozinha francesa que resistia a mudanças, a alguém que o tentava convencer a modernizar a decoração: “ninguém vai ao meu restaurante para comer cortinas”!


Restaurante Gambrinus
R. das Portas de Santo Antão 23
1150 Lisboa, Portugal
213 421 466

http://www.gambrinuslisboa.com/

1 comentário:

  1. Conheço o Gambrinus desde pequenino (e isso são muitos anos!). É preciso dizer que tem o melhor prego do mundo e os melhores croquetes do planeta. Podem ser degustados no bar, que é mais simples, com uma gambrinus -imperial com 50% de cerveja preta. O preço de um prego com duas gambrinus é o preço de uma refeição ligeira em qualquer restaurante e uma experiência que não se encontra em restaurante nenhum!
    Quanto aos croquetes, feitos na hora... não tenho palavras.

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