“O prazer da comida é o único que, desfrutado com moderação, não acaba por cansar”

Brillat-Savarin


quinta-feira, 30 de agosto de 2012

“Due son gli corni!”


Por estes dias, assim que “aterrei” no Algarve, fui a correr para o Evaristo. Arrastei comigo uma amiga, nada dada a ambientes populares ou ruidosos, mas as saudades do peixe do Atlântico falaram mais alto.

Azar o nosso, a noite foi particularmente barulhenta. Sorte a nossa, porém, é que, à boa maneira lusitana, as turmas de casais mais os filhos, e os filhos dos amigos, gostam muito de comer depois das 10 da noite, quando já estava eu quase a terminar de apreciar uns carabineiros bem tratados, umas lulas soberbas, imperdíveis, tal a frescura e tempero com que se apresentaram, e um cantaril que, entre o mar e o prato, passou de forma sublime pela grelha.

Serviço gentil, correcto e discreto, supereficiente, como se exige e se espera. Tudo bom, menos o ambiente “tascoso”, imposto pela afluência simultânea de grupos e que me fez fugir dali assim que terminou o jantar. Bem diferente de uma outra noite, também recente, em Viareggio, Itália.

Restaurante junto ao porto, paredes meias com os estaleiros de onde saem os iates de renome que se balanceiam por esses mares fora.

“Trattoria Da Cícero”, assim se chama o restaurante onde o peixe também é absoluto protagonista. O peixe e o dono: homem de fartos bigotes e barriga bem ao estilo do Obelix. Duas salas em azul clarinho, com a cozinha à vista e o peixe em bancada.

Avaliava-se a escolha de uns lagostins, para entreter o estomago, enquanto se pedia um fresquíssimo besugo, que se apresentou em forma de caldereta. Avaliação reservada aos homens do grupo que, gentis e a pensarem na silhueta das senhoras, se preparavam para pedir apenas dois lagostins por prato.

“Due? Due son gli corni!” – replicou em voz grossa o Obelix, a fazer contas à caixa registadora. É certo que acompanhou a expressão com o gesto, de indicador e mindinho alçados, mas foi de uma elegância e simpatia desarmantes. Seja!

E chegaram à mesa, não dois, mas três lagostins por dose, frescura realçada pela simplicidade da cozedura ao vapor. Sem mais. Os homens foram perdoados e o Obelix também.

Enquanto esperava pelos bichos, não resisti à cesta do pão. Provei e aprovei a focaccia; ainda assim, para tristeza de uma das minhas queridas amigas, foi à chapata que me rendi e onde me perdi. Crocante e a pedir lambuzuras com a manteiga. Due son gli corni? Quais dois! Três, quatro…perdi a conta aos pedaços de pão!

Serviço simpático e atento, renovou a cesta do pão. Ambiente fresco. O requinte informal sem paralelo nas marisqueiras de Lisboa. O Trio de lagostins denunciou a qualidade da cozinha, confirmada a seguir pelos lombos de besugo servidos “em cama” de batatas, a chorarem para serem devoradas!

Não pensava então trazer o registo ao blog, por isso não ficaram as provas gravadas em imagens. Scusami!

Por razões diferentes, mas também justificadas, não sobraram fotos de uma outra soberba refeição. Desta vez, ao almoço, em Capraia. Uma antiga ilha prisão. “La Garitta”, restaurante junto ao Castelo, a obrigar a uma íngreme caminhada de vários quilómetros, mas que vale todos os passos.

 
Provei a carbonara di mare, com uma brunesa de lulas e polvo ligeiramente refogados e uma pitada de natas só para conferir untuosidade (aprendam oh, pseudo restaurantes italianos que se ostentam em Lisboa, e que apresentam as massas a nadar em natas!!!). Sabores suaves; e, sem esforço, rendo-me aos multiplicados elogios que foram surgindo dos vários lados da mesa. Não ficou massinha para fazer apodrecer a história.

E se os elogios pareciam esgotados na carbonara, não faltaram os aaahs e oooohs, nham-nham nas lulas que se apresentaram a seguir. E lulas!!!...

 
Que lulas!!! Ainda assim, reconheço, nas memórias deste verão, ficam a ganhar as do Evaristo! Memórias de sonho e encanto que não cabem partilhar aqui.

Volto a Capraia e ao La Garitta. Serviço simples e um restaurante aberto expressamente para o grupo de portugueses onde me incluía, o dono acordou no mar para pescar a corvina que horas depois cozinhou divinamente em frigideira, num molho temperado de manteiga e azeite, aromatizado com alho e salsa. O peixe bem tratado, sem trair a frescura. O molho, de uma inultrapassável leveza, a realçar a textura do peixe.

Mais uma prova de que a elegância se faz da simplicidade dos sabores e…dos gestos! O serviço a combinar com a cozinha, num restaurante de ambiente familiar de uma ilha recôndita do Mediterrâneo.

 
Não é preciso mais. Especialmente quando o mais se resume a um pretensiosismo decadente, rendido aos rublos dos russos, novos ricos que empestam os lugares míticos do glamour que fez a história da Europa.

“Não têm maneiras, mas são os únicos que compram” – reconhecem, entredentes, italianos e franceses, também eles agarrados pela crise que ameaça o euro. Pois!


E a frequência de hoje do Splendido, o hotel que faz o bilhete postal de Porto Fino e que guarda memórias de deslumbramento, não será assim tão exigente como a do passado. La Terrazza, o restaurante anfiteatro do hotel, guarda as vistas de sempre, mas perde na cozinha e no serviço para outros restaurantes bem mais modestos.

 
 
Lá fui, também, dizer presente e apreciar o Mediterrâneo numa noite quente. O mesmo grupo de seis pessoas à mesa. Todos incomodados pelo pianista “ali tão em cima”. Música que abafa conversa não serve de companhia, que a mesa latina reclama convívio!!!

Amuse bouche resumido a um puré de batata, que chegou frio, a servir de cama a “caviar”, falso, de nero. Industrial. Provei e rejeitei, pois claro, que é preciso guardar as calorias para melhores sabores.

A minestroni, em receita genovesa – tipo colher em pé –, terá convencido quem pediu.


O meu carpaccio também passou no exame, ainda que tenha colocado reticências às placas de queijo, preferindo a clássica versão em lascas finas. Já agora, também teria preferido a carne mais fina… Grazie mille!

 
Teria sido pedir de mais, numa cozinha atabalhoada com um serviço que se revelou a condizer. Grelhada mista para quatro, que dois dos comensais, em boa hora, se refugiaram num pregado, creio. O pregado terá cumprido a função, ainda que à vista desarmada se tenha apresentado com azeitonas a mais.

O pior mesmo ocorreu com a grelhada. Dois de nós servidos com peixe espada, atum, lula e gamba; os outros dois ficaram de prato vazio. O desconforto da espera. O peixe a arrefecer e a surpresa tardia de a dose seguinte não corresponder ao mesmo numerário.

Não foi necessária chamada de atenção. Para compensar, vieram de acrescento mais três camarões grelhados por dose. Fraco consolo! Bichos magros e palhentos, desenxabidos, tal como os restantes peixes, que secaram na grelha! Madonna! Como è possibile?

Cozinha e serviço não condizem com as vistas, nem com a carteira.

 
 
Desconcertante foi também o serviço de um outro restaurante, este já em terras gaulesas. A Hostellerie Jérôme, um pequeno hotel de charme, situado num antigo mosteiro, em La Turbie, uma pequena aldeia medieval, ao cimo do Mónaco. Duas estrelas Michelin que se perderam entre a cozinha e a sala.


Aqui, éramos quatro à mesa. Mal nos sentámos e nem nos deram tempo para consultarmos a carta, ou sequer pedir o vinho. O amuse bouche foi despejado na mesa sem grandes explicações: sticks folhados com  mousse de beringela e mousse de salsa; gaspacho de tomate com sorbet de aipo. Num acerto de contas com o desgarrado serviço, os sabores, bons, mas também eles desgarrados.

 

Camarões em maracujá, com folhas de coração de alface e amêndoa crua. Boa harmonia e suavidade.

Medalhões de lagosta azul com creme de limão, lâminas de pêssego, flor de beringela e louro frito. Bom. Excelente.

 

Salmonete com alho assado e alcachofras salteadas. Muito bom.


 

Pombo assado com cepes e cantarelos, fígados, azeitonas e foie gras fresco. De ir aos céus e evitar ir para cima da balança. Harmonia de sabores quente, numa noite a reclamar frescura, mas numa conjugação perfeita.


Morangos do bosque com chantilly. Reposta a frescura que se pedia.


Sorbet de ruibarbo com zestos de laranja. Adoro ruibarbo, que para mim é sinónimo de legume de sobremesa, claro! Cá em casa, há o hábito do soufflé de ruibarbo. Continuo a achar que é a melhor forma de apresentar este caule. Ainda assim, o sorbet funcionou bem como digestivo. Tê-lo-ia preferido como separador ou pré-sobremesa. Mas…chef manda! Ou terá sido o serviço?

 

Finalmente, mignardises que valem por sobremesa!

 

As queixas ficam em crédito, que sobra a vontade de voltar. Sobretudo pela companhia e pelos amigos, que a mesa lusa faz-se de sabores mas, sobretudo, de…”combibio”!


Já no regresso a Portugal, em dia de passagem por Lisboa, paragem num japonês, onde já não ia há muito tempo. E “quem não aparece, esquece”. O ditado popular faz-se valer, neste Sushi Café, das Amoreiras. É que aqui, faz a diferença “ser da casa” e não um penetra.

Mas, num domingo à noite, em pleno Agosto, não sobra grande escolha para quem reclama por peixinho cru! Em boa hora. Serviço competente a revelar-se muito preocupado com qualquer falha…que não teve!

- “Desculpem-me, mas ainda estou em estágio!”, justificava-se o diligente empregado, que na conversa revela ser um recém licenciado em…Arquitectura, ansiando por uma colocação…no estrangeiro!. Gestos educados e delicados.

- “Sr Arquitecto - digo-lho eu - passou no estágio, e deu cartas a muitos profissionais do sector!!!”.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Duas estrelas Michelin em português

Há um manto de silêncio e eu não entendo a clandestinidade a que os críticos de gastronomia votam o nome de Sérgio Vieira.
Conquistou este ano – e é o primeiro chef português a consegui-lo - duas estrelas Minchelin. Duas estrelas em França! Poucos se deram conta disso. Soube da noticia por um outro grande chef, o Nuno Diniz que me confessou a estranheza pela imprensa portuguesa e os blogues da especialidade, não fazerem nenhuma referência ao feito.
Descendente de pais portugueses, Sérgio Vieira, assina e dá pelo nome de Serge. Vive e trabalha no sul de França. Em 2005 venceu o prestigiado concurso "Bocuse d'Or". No ano passado, conseguiu saborear a primeira estrela e, não demorou a obter as duas estrelas no restaurante que abriu com o seu próprio nome, um castelo em Chaudes Aigues.

Não conheço o restaurante, nem a cozinha de Sérgio Vieira, mas fico a salivar com a descrição feita pelo Nuno Diniz aqui


Assim que o Sr. Primeiro-Ministro decretar o fim da crise, esta pobre portuguesa promete  lá ir para conferir o sucesso da culinária em dupla nacionalidade de Serge/Sérgio Vieira.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Claro! – Uma cozinha de exclamações…


"Non... rien de rien...
Non... je ne regrette rien
Car ma vie, car mes joies,
Aujourd'hui, ça commence avec toi!"

Não conheço Victor Claro. Não cheguei a ir ao Albatroz, muito menos à Malhadinha.

Um dia, registo o desafio deixado em mensagem no FacebooK: “ não quer vir ao meu novo restaurante?”

Seria mais um dos muitos convites que entram na minha “piquena” lista de “está-bem-quando-puder”, não fosse o caso do restaurante ser um espaço que me é querido.

Há muitos anos que lá não ia, já que eu fujo da decadência como o diabo da cruz…

Mas o convite, feito desafio, e a vontade que eu tinha de conhecer a cozinha de Victor Claro, falaram mais alto. Por que não? Não vou à espera de recriar o clássico, mas bem feito, tornedó com molho de mostarda, palmitos e batatas fritas que, invariavelmente, comia, já lá vão muitos anos. Não, não espero nem procuro um regresso ao passado.

Quero ser surpreendida. E espero ser surpreendida. É, na maioria das vezes, a razão que me leva, nos dias que correm, a trocar o jantar caseiro pelo restaurante.

E é o que faço numa destas noites de sexta-feira. Ala que se faz tarde: marginal fora, a aproveitar uma noite fria. mas límpida. Do rádio do carro, salta a voz de Edith Piaf: ”Non, rien de rien. Non, je ne regrette rien” …

Antes de Paço de Arcos, viro à direita, para entrar no estacionamento do Hotel Sol Palmeiras, um antigo palacete frente ao mar.

Victor Claro pegou no La Cocagne, mudou-lhe o nome, baptizando-o com a força do próprio apelido, e fez o restaurante ressurgir das cinzas.

A cozinha é simplicidade, onde a qualidade dos produtos se une ao bem-fazer. É o que encontro neste restaurante de Victor Claro. Arte, numa cozinha bonita.

Victor recebe-nos na antecâmara do restaurante, uma generosa zona de espera e não aqueles minúsculos espaços que só existem para compor a decoração. Encaminha-nos à mesa, na varanda fechada, com vista para o mar.

A primeira grande dúvida de sempre é que  vinho escolher, dúvida de imediato resolvida, com a proposta - Posso trazer o meu vinho? A pergunta tímida do chefe, sem esconder um indisfarçável orgulho.

Orgulhoso do seu vinho e com toda a razão. Dominó Branco 2010. Um vinho de autor que a Niepoort Projectos acolheu. Victor Claro comprou a produção inteira de uma pequena vinha velha, na Serra de São Mamede, e a Niepoort aceitou produzir. Aromático, fresco. Faz uma excelente ligação com grande parte da refeição.



Conseguido o primeiro prazer inesperado da noite, os meus olhos ficam presos a uma cesta de pão. O miolo macio e húmido, com largos alvéolos e côdea tostada, bem crocante. Guloso. Uma fatia não vê outra. Não sobra migalha para acompanhar o paté de porco que chega à mesa, também ele de chorar por mais. 


Fico a saber que o pão, rústico, é feito no restaurante. Simples, esclarece-me o chefe: água, farinha e fermento. Parece, de facto, simples. Mas sei, por experiência própria, que não é tão fácil quanto parece. Faço vénias.

Ostras com maçã e maracujá. Azar o meu. Na lista do que não gosto, esqueci-me das ostras! Penitencio-me, obrigando-me a “engolir” uma. Fresquíssima, reconheço. Abençoado maracujá!  As restantes, aproveitando uma distracção do chefe, desaparecem no prato da frente com olhinhos de felicidade.

Percebo que o chefe se divide entre a cozinha e a sala. Empresta um tom intimista, estilo "a-minha-mesa", sem pretensões, mas...com alma! Disponível para explicar, aberto a conversar quando chamado a isso.

Segue-se a sopa de peixe – atum em cubinhos num consommé transparente, brunesa de cenoura e um ravioli de mexilhão com mint jelly, que o chefe recomenda que se coma no fim.

Mint jelly é uma geleia de hortelã-pimenta, uma tradicional compota que se usa na cozinha indiana. Açúcar, menta e vinagre branco. Uma fresca explosão.

Hora dos legumes. Um puré com couve flor e aipo e um toque de trufa em farrapos.  A mais valia da trufa a revelar-se quase só no efeito visual.

Ravioli com beterraba. Com óleo de sementes de abóbora.












Vitor Claro a colocar em prática o conceito de um prato em dois actos.

Voltamos ao peixe. Cachucho em caldo de marisco, com burriés, ostra e juliana de pepino. O peixe cozinhado em vácuo. Fresquíssimo. Mais uma vez, às escondidas do chefe, a ostra "voa" para o agradecido prato da frente. Posso apreciar o resto do prato...sem constrangimentos!


"Chega de frescura!"...com todos os elogios, é claro, mas a noite pede mais calor. E como resistir a um Colares de 69 para fazer companhia à barriga de porco preto com camarão e noodles: massa de ovo em caldo de camarão, com molho de soja.


Divino! Adivinho que a balança vai cobrar...mas, não me arrependo do "pecado".

Por esta altura, o estômago já reclama e o chefe adivinha que a sobremesa deve surgir apenas como...um aconchego. Pêra com gorgonzola. Um clássico, sem reparos, a servir para terminar o vinho.


Uma carta de vinhos única, feita à medida dos sabores do chefe, com alguns Borgonhas, a confessada zona fascínio dos “vinhos a sério”.  E os Bordéus,  a servir de montra - um Latour 99 a 420 euros ou um Margaux 2002 a 360 euros.

Vinhos que nos fazem sonhar e salivar, mas numa mesa em frente reparo num jovem casal e no Prova Régia que escolhem para acompanhar a refeição. Claro! Porque não? Há momentos que valem por si...

Tchim-tchim!...

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Ocean – Na memória de um luar de Agosto

Acaba de conquistar uma segunda estrela do Guia Michelin. Confesso que não me surpreende.

O restaurante está integrado num luxuoso e exclusivo resort, situado no topo de uma colina, inclinado sobre o Atlântico. Transposto o portão, quase ninguém se apercebe da estragada e feia vizinha Armação de Pêra. Para lá dos muros, impera o luxo, o bom gosto, num ambiente tranquilo de jardim tropical sobre o mar.
A circulação é condicionada por forma a preservar o bem-estar e sossego dos clientes, quase todos estrangeiros, a maioria alemães e ingleses. Os carros só vão até ao parque de estacionamento, logo à entrada, e a deslocação para o restaurante, só se faz mesmo a pé ou, então, requisitando um carrinho de golf.
Numa daquelas quentes noites de Agosto, fui la jantar. Ainda não se falava no corte do subsídio de férias…
Noite de Lua cheia, permitiu usufruir, com todo o esplendor, da pequena varanda.

Serviço exemplar, a fazer chegar à mesa, sem grande demora, o pré-couvert. Uma tábua onde se alinhavam finger foods: almôndega de alheira, linguado na gelatina de noz, frango picante e um cone de massa filo com pate de sardinha com caviar de truta, a que se junta ainda um crocante de batata-doce.

 Criatividade na apresentação, com o linguado preso a uma espinha de peixe.

Só não provei o cone. Sardinha é sabor que, como se sabe, está longe dos meus gostos. A almôndega e o linguado – sabor intenso contra sabor suave – cumpriram. O frango, menos conseguido, abre espaço para me vingar nas manteigas que emprestam cor e sabor à mesa.



 
Para o Amuse bouche, a loiça está conformada a uma trilogia, seguindo o princípio da matrioska, brinquedo tradicional da Rússia, constituído por uma série de bonecas, colocadas umas dentro das outras, da maior até à mais pequena. Neste caso, os pratos também encaixam uns nos outros.
Por cima, uma espuma de escabeche com cavala – que me dizem ser conjunto em que o escabeche muito suave não morre no sabor intenso da cavala.

A seguir, geleia de legumes com uma saladinha de polvo. Cristão!

Por fim, um gaspacho de lúcia, com tártaro de atum e frango – porventura o melhor de todo o entretém


Foi o terceiro jantar que fiz no Ocean. No verão de há dois anos, tive a sorte de lá ir por duas vezes. E, de um ano para outro, percebo o esforço do jovem chef de lutar pela segunda estrela. Na evolução, ganhou maturidade.
O menu, garante-me a chefe de sala, vai variando, ao sabor da inspiração do cozinheiro.

Nessa noite, para primeiro prato de peixe, foi escolhida uma dourada selvagem.

A servir de cama, uma espécie de lasanha, com caneloni de rábano picante, salicórnia e cornichons. Na miscelânea de sabores, ainda uma espuma de marisco, geleia de cornichon e rábano picante,e uma saladinha berbigão, percebes e lulinhas bebes. Tudo se conjugou, na cor e no palato.

Seguiu-se um outro peixe. Robalo com peito de vitela, alcaparra panada e uma folha de ostra. Mais uma espuma, creme de trevo. Excelente combinação de peixe e carne nobres, em que a diferença singularizava cada sabor.

Se algum defeito posso apresentar dessa noite, é, precisamente, o abuso de espumas.

Para prato de carne, apresentou-se um lombo de borrego com cebolinha confitada e recheada com…mais uma espuma! Esta de batata. Para o registo do prato, conta ainda a telha de favas bebé, uma lâmina de toucinho entre a telha e o borrego, amêndoa verde e favinhas num molho de sobrasada.


Como o borrego está para as carnes como a sardinha para os peixes…niet! Nein! Bec!!! Gentileza do chefe, mereço um lombo de porco com várias texturas de beterraba: beterraba crocante, beterraba juliana, rebuçado com recheio de porco. Beterraba e, claro… a espuma…

Lindo! Uma pintura no prato que não se ficou só pelo excelente visual.

Faltavam os doces, embora já com pouco espaço no estômago.

Do guião do jantar, constou uma pré-sobremesa.

Gelado de amêndoa com bolo Nova Iorque. Tradução: petit gateau. Com redução de balsâmico e caramelo. Não sei se cumpre o conceito de pré-sobremesa.

 E, finalmente, a bica.

Chocolate preto com maracujá, manga e mousse de chocolate branco. De grande qualidade!

Plenamente repletos, já não há espaço para mignardises. Mas para garantir que os comensais experimentam as miniaturas do chefe, é disponibilizada uma caixinha para mais tarde provar.

Cozinha de exposição. Elegante. Na memória deste jantar, guardo a ambição de Hans Neuner em mostrar numa só refeição todo o talento. E invoco nessa noite um diálogo recente que tive com outro chefe estrelado, José Avillez, que me confessava estar convicto de que a forma de garantir a manutenção da ambicionada estrela Michelin, é trabalhar para conquistar a segunda estrela.

Não sei se Avillez partilhou a receita com Hans, mas, nessa noite, fiquei convencida que o jovem chefe austríaco perseguia esta lógica. Confirma-se agora que a estratégia teve sucesso. A competir com Koshina, apenas a uns quilómetros de distância.

sábado, 3 de setembro de 2011

Vincent – Cinco estrelas!



É raro, muito raro: chegar a um restaurante e cheirar-me a…comida! Não falo daqueles cheiros a fritos ou coisas que tais que não queremos que se emprenhem na roupa! Claro que não! Grrrr!
Refiro-me àqueles cheiros caseiros, de boa comida, que entram pelo nariz dentro, mas não se entranham! Os cheiros que encontrávamos quando chegávamos a casa dos avós e assistíamos às mulheres da família, atarefadas, junto do fogão! Inebriante…siga-se o cheiro!!!...
Atravesso o jardim para chegar ao varandim! Certo. Rimou, eu sei. Mas, é assim mesmo! Só que, em vez do cheiro da relva, entram-me pelas narinas os aromas da cozinha. Aromas vários, caseiros, que se misturam. De assado, de sopa, de pão. E tenho vontade de fazer crescer o nariz, qual desenho animado e deixar-me enlevar…zzzzzzz, lá vou eu!!!
Restaurante de beira de estrada, em Almancil, onde começou o Tradicional e, depois, o famoso Ermitage. Mesa familiar para mim, cliente habitual nas noites de verão, reconhecida por uma equipa de sala que se mantém, constante, afinada. Sinto-me em casa.
Carta renovada; e ditadas as opções do dia, mantenho o olhar num clássico, a terrina de fígado de ganso com molho de amoras: “há pratos que não podemos tirar da carta, senão os clientes zangam-se” – diz-me a Ana, a justificar algumas opções que não saem do menu. Concordo.
O amuse bouche permite-me confirmar que a cozinha do Vincent continua a funcionar como um relógio suíço: não falha.
Vincent Nas apresenta-nos uma trilogia para abrir o apetite. Vichyssoise com crocante de presunto. É a mais clássica sopa da gastronomia francesa, embora tenha sido criada… nos Estados Unidos.
Diz a história que, numa noite muito quente de verão, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, Louis Diat, cozinheiro chef do Ritz-Carlton de New York, se lembrou de uma sopa fria que sua mãe costumava fazer. Um creme de batata que Diat baptizou com o nome da cidade onde nasceu - Vichy. Sucesso garantido nas noites de verão. Uma sopa associada sempre à ideia de refeição sofisticada, embora tenha como base, simplesmente, batatas, alho francês, caldo de galinha e natas.
Sabe sempre bem e fez boa ligação com o sashimi de salmão e uma almôndega de vitela.

Na entrada, mantenho-me nos clássicos. A terrina de foie gras que se apresenta com umas torradinhas de pão brioche. Deliciosa. Cremosa, embora de textura firme. Delicada. A inovação é introduzida no acompanhamento. Desta vez, para além dos verdes que dão cor ao prato, Vincent escolheu uma lâmina de cabeça de aipo, em cone, com recheio de ripas de beterraba. Excelente ligação de sabores.

Para o prato do lado veio um carpaccio de salmão, de textura e tempero irrepreensível.

Apreciadas as entradas, como prato principal, sigo uma das novidades da carta, o hamburger de atum, que peço para acompanhar com uma salada. Bendita a hora. Nunca tinha comido uma alface assim, ou, pelo menos, já não me lembrava de como uma alface pode saber a alface. Fica justificado porque é que uma simples salada de alface tem direito a surgir também na carta com honras de entrada.
É uma salada que vale por si, mas que nesta noite fez muito boa companhia ao atum picadinho e em formato de hamburger. Mas não se pense que por ser hambúrguer a matéria-prima é de menor qualidade. Não senhora! Até porque Vincent apenas o braseou de ambos os lados, deixando realçar, no interior, toda a frescura e sabor do peixe. Consolada! Só se dispensavam uns camarões intrusos. Estavam bons, é certo, mas não eram necessários para garantir a riqueza do prato.

Feliz com a minha opção nem sequer invejei o tornedó que me fez companhia no prato do lado, apesar dos relatos elogiosos.
A carta de vinhos é exemplar. Os doces, sempre uma tentação a que, desta vez, resisti.
Restaurante requintado que consegue recriar um ambiente familiar e, ao mesmo tempo, cosmopolita, com uma qualidade sempre constante, continua a ser o grande mistério do Algarve: o que levará o Guia Michelin a mantê-lo fora das estrelas?
Afável, no alto de um farfalhudo bigode já quase todo branco, Vincent encolhe os ombros à despedida, apenas atento ao ar de satisfação dos clientes.
Vincent
289399093
Estrada da Fonte Santa
Escanxinas
8135-016 ALMANCIL