“O prazer da comida é o único que, desfrutado com moderação, não acaba por cansar”

Brillat-Savarin


domingo, 31 de outubro de 2010

Varanda do Ritz - Que desconsolo!...

Sexta-feira à noite, seja cá em casa, ou em restaurante, é noite reservada para se comer bem. Sem desculpas. E sobre esta sexta-feira de que vos falo, nada faria advinhar o contrário. Ritz. A Varanda do Rizt em Lisboa e o jantar de abertura do Lisbon Top Chefs.

Promovido pelas Edições do Gosto, em parceria com a Chaîne des Rôtisseurs, a confraria gastronómica mais antiga do mundo e com o apoio do Turismo de Lisboa, o "Lisbon Top Chefs" promove até  5 de Novembro, em cada restaurante um menu específico, concebido para o evento.

A ideia é dar a conhecer a excelência da gastronomia alfacinha. Criações de dez chefs de Lisboa, entre os quais, José Avillez, Luís Baena, Vitor Sobral, Henrique Mouro, Joachim Koerper ou Vincent Farges. Chefs e restaurantes que sempre se dedicaram à cozinha de topo.

Ora, por uma razão ou outra, certo é que nunca tinha ido jantar ao Ritz. Já tive a sorte de, por diversas vezes, experimentar ao almoço aquele que é considerado o melhor buffet de Lisboa, mas nunca tinha ido avaliar, no sossego de um jantar, as criações de Pascal Maynard que, há anos, se bate por uma estrela Michelin.

O jantar de abertura do “Lisbon Top Chefs” pareceu-me a oportunidade ideal para remendar tamanha falha. Em má hora, ou melhor, em má noite! Depois de um dia caótico por causa de uma chuva mais grossa, a revelar toda a fragilidade da falta de limpeza e manutenção da cidade, o cair da noite pedia messas, nas fofas alcatifas do Ritz, mas o denominado coktail de boas vindas antecipou o testemunho da cozinha triste que se iria revelar ao longo da noite.

Um espumante messias e um sumo de laranja que, se não era de pacote parecia, emprestavam um ar deslavado a uns pindéricos grissinios folhados que solitariamente se passeavam em travessas pelo salão. Sem graça. A agudizar o clima-de-crise-que-está-no-ar em contraste gritante com os lustres dos salões. Por mim, dei vivas, porque manda a minha balança que fuja dos aperitivos como o diabo da cruz; e, aqui, não foi preciso.

Já sentada,  o Amuse bouche do Chef Pascal Meynard a revelar-se apenas mediano, foi essa a opinião unânime da mesa. Creme de abóbora com natas que foi ao liquidificador temperado  com fava de tonka. O efeito visual do pequeno copo era completado com uma espuma de leite trufado que não acrescentava sabor.

E se a função do amuse bouche é, precisamente, estimular o paladar, este “alegra a boca”, trouxe pouca alegria. E denunciou o destino da noite.

É que a seguir, as vieiras selvagens e emulsão de agrião espalharam maior desilusão. De tão cozinhadas viraram borracha e a emulsão de agrião cuja função deveria ter sido a de puxar pela frescura das vieiras, esmoreceu.

Até aqui estava no copo um Quinta do Cachão branco 2009, pálido, sem aroma nem história.

Na minha mesa, a cesta do pão começou a servir de compensação quando chegou o cherne no vapor com citronela e gengibre, consommé de giroles, crocante de salsifi e yuzu. Também não entusiasmou. “Peixe de spa” – comentava,  já visivelmente desanimado, um dos comensais. Um resumo de prova que diz bem como a citronela e o gengibre – os aromas que, no mimetismo português, invadiram por igual todos os spas - abafaram todo o prato. Compreendo o comentário.

No copo, agradou a mudança de tom.  O Quinta do Valdoeiro branco 2009 a mostrar boa concentração e um final persistente.  

Os sabores exóticos continuaram com o lombo de novilho marinado com pimenta Sarawak, geleia de berberis e kumquat, cogumelos selvagens glacé com vinagre Jerez al Pedro Ximénez. Extensa descrição para recordar apenas um sabor dominante de foi gras e uma carne que, para meu gosto, passou do ponto. Teve por companhia um Quinta do Penedo Tinto 2008, um Dão agreste que não me encanta.

Para tantos amargos de boca restava o refugio da sobremesa. Crocante de chocolate Jivara, creme de praliné, sorbet de pêra e fava Tonka. Grande efeito visual,  mas fava de tonka a abrir e a fechar uma refeição diz bem da falta de inspiração de um menu pretencioso, mas desinteressante.

E eu, até gosto e muito de  fava de tonka, uma especiaria que raramente se encontra à  venda. Com o aspecto de um feijão oval, pode ser ralada em pequenas quantidades, tanto em pratos salgados, como em doces, muito aromatica, sabor suave, algures entre a noz moscada e a baunilha. Já corri o Rio de Janeiro e Londres à procura da dita, que acabei por conseguir comprar no Sacco, em Cascais, por especial encomenda, depois de chorar as minhas desventuras.

E que pena, no regresso a casa, não haver no congelador um gelado de fava de tonka.

Rua Rodrigo da Fonseca, 88
1099-039 Lisboa
Tel. 213811400

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Bistro 100 Maneiras – “À maneira!...”

É imagem de marca dos restaurantes de Ljubomir Stanisic. O branco e o preto.  São cores neutras, mas a cozinha deste sérvio alfacinha, de neutra, não tem nada. É talentosa, por vezes, provocadora.

Mais uma vez, neste bistro 100 Maneiras, o branco das paredes e tectos domina o ambiente. Confere personalidade ao restaurante, no contraste com o chão preto.  Estantes de garrafas por detras do balcão em pedra negra fazem de objectos decorativos. Uns pássaros em loiça preta esvoaçam no conjunto.  Os dourados dos corrimões remetem para um estilo clássico, mas o que sobressai é um espaço moderno, elegante e aconchegante. Onde apetece estar.

Na provocação do destino, este bristro (é mesmo assim, sem assento circunflexo) foi-se plantar quase em frente ao Tavares rico do José Avillez, ele que já foi sócio de Ljubomir no primeiro 100 Maneiras, em Cascais. Avillez já tem uma estrela Michelin, Ljubomir está longe desse brilho, ainda assim, merecedor de boa nota.

De Cascais veio para o antigo Olivier, da Rua do Teixeira, no coração do Bairro Alto. Mantém-se esse  100 Maneiras, formatado num menu de degustação pensado à medida da minúscula kitchenette que suporta a sala. Uma fórmula de sucesso mas que impedia este jovem jugoslavo de ganhar asas. Agora, na Rua da Misericórdia, pode tirar proveito de mais espaço e visibilidade para retomar uma cozinha mais inspirada.

Aberto há poucas semanas, dei-lhe tempo para que se instalasse.  Passado esse “período de nojo”, lá fui eu enfrentar o trânsito/estacionamento do Bairro Alto numa sexta-feira à noite. 

Sem paciência para andar às voltas à procura de um lugar para o carro, conformei-me com o “Alto do Parque”.  “Tem lugar no -4”, avisa-me uma voz, ao mesmo tempo que me entrega o tikect. E, no soar das estopinhas, vocifero que devia estar na prisão quem autorizou o licenciamento deste parque de estacionamento que viola todas as medidas do bom senso e da legislação. O certo é que, à boa maneira portuguesa, abriu, continua a funcionar e, apesar dos protestos, eu continuo a usá-lo quando necessário. Seja! Garante-me que fico a poucos metros do restaurante e a minha destreza  permite-me que vença a exiguidade do espaço. Mas as marcas nas paredes estão lá, a atestar que aquilo não serve para carros maiores e condutores menos ágeis.

Subo uns 50 metros da Rua da Misericórdia e dou por mim num acolhimento simpático e caloroso, a ser encaminhada para a mesa reservada. Na sala de baixo, ficam os fumantes, no primeiro andar, a zona de não fumadores.

Os atoalhados mantêm a brancura do tom, as cadeiras, herdadas de anteriores decorações, só não destoam por serem tão confortáveis.

Mas vamos à ementa que é o que importa para afagar o estomago.  Um  plastificado negro, preso a um suporte metálico, permite uma consulta simultânea para os dois lados da mesa.  Carta dividida entre o picanço  que, entre parentesis, esclarece serem petiscos;  os clássicos que são os êxitos firmados do chefe merecem lugar de honra; os pratos principais surgem com a curiosa designação de “o resto é conversa”. Há também umas degustações para corajosos antes do “ final feliz” das sobremesas.

Sem querer ser exaustiva, que o meu Alzheimer não me deixa recordar a lista completa, o picanço passa por cascas de batata com ervas aromáticas,  burek jugoslavo de queijo fresco e espinafres, atum braseado, Tarte de foie, morcela, maçã e flor de sabugueiro ou, ainda, a empada de caça. Para corajosos, há molejas, caviar e maranhos.

Nos pratos principais, retenho as escolhas da mesa do lado, as vieiras, palha de alho e espargos e a marmita de peixe. Bem sei que é feio olhar para os pratos vizinhos, mas confesso a indelicadeza. E, a avaliar pelo ar de agrado dos comensais, terão passado no exame. No top ten de êxitos está inscrito um risotto de cogumelos, um borrego em pistaccio ou as bochechas de porco preto. Ficam na lista.

Na dúvida de opções, peço um esclarecimento ao empregado que naquele momento me enchia os copos com água. Recebo de pronto um “não sei, sou empregado de bar”. Ooops, resposta errada!!! Há cem maneiras de confessar não se estar preparado para ajudar o cliente, mas esta não é uma delas. De todo. Valeu que se prontificou a chamar um colega mais entendido na carta. Apenas um detalhe, num serviço simpático, eficaz, embora muito corrido e que, no seu conjunto, deixa transparecer ter vestido a camisola.

Prestados os esclarecimentos pedidos, sou ainda informada que, fora da lista, havia uma salada jugoslava, feita pela mãe do chef, também ela a meter a colher nesta cozinha.

Escolha estabilizada em quatro petiscos a partilhar por duas pessoas. Preparava-me para pedir o prato principal não fosse o conselho avisado do empregado a sugerir que me ficasse apenas pelos picanços e que verificasse depois se ainda teria espaço para mais. Não tinha, não senhora!!! Nem mais uma migalha...

Para a próxima vou ter de cortar nas entradas para chegar ao “resto da conversa”.

O couvert só veio para a mesa com autorização prévia, um procedimento pouco habitual nos restaurantes portugueses.  Merece aplauso, o gesto e o conteúdo. Uma serapilheira com fatias de pão tipo alentejano e broa de milho. Azeite com uma haste de tomilho e manteiga de ovelha servida numa lata de caviar (???). Manteiga aprovadissima, mas pergunto-me qual será a ligação. Caviar, ovelha, manteiga...confesso que não imagino, nem vejo vantagem visual nas ditas latinhas.

Seguimos a sugestão da salada da mãe do chef, em boa hora. Um mil folhas em cilindro com pimento vermelho assado, fiambre, queijo fresco cremoso e cornichons, tudo assente num blini. Conjunto agradável, fresco, a fazer boa companhia a outro petisco que chegou à mesa em simultâneo, o burek jugoslavo de espinafres. Pelo tamanho, só por si, vale uma refeição. Um pastel de espinafres e queijo fresco em embrulho de massa filo servido num tachinho de cobre com uma quenelle de creme fraîche limonado. Por excesso de cozedura ou tempo de espera, o recheio a revelar-se ligeiramente seco, mas o pastel agradou.

No segundo tempo, em ardósias separadas, dois pastelinhos de caça e kadun boutich que me descrevem como uma entrada jugoslava de figados, semelhante a uma patanisca, mas sem farinha. Almôndegas espalmadas, parece-me ser a imagem mais precisa. O sabor forte dos figados só é suavizado pelo creme fraîche com cebolinho que se apresenta ao lado.

O pastel de caça,vulgar. Não deslumbrou. E o cremoso de queijo da ilha com trufa que lhe serve de companhia pode ser mais-valia visual, mas, em sabor, não acrescentou nada.

Para este jantar de entradas foi escolhido um Vallado tinto 2008, de créditos firmados.

A carta de vinhos cumpre. Rótulos variados a preços que começam nos 13 euros do Cono Sur Carmenere, um tinto chileno versátil, até aos 900 euros pedidos para um Barca Velha de 1982.

Um restaurante com personalidade animada que promete ser uma formula de sucesso a preços pouco salgados.

Bistro 100 Maneiras
Largo da Trindade, 9
1200-466 Lisboa
Tlf 210990475 / Tm 910307575

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Gspot – outra vez...a cantar hossanas


Já se percebeu que este restaurante despretencioso, mas de simplicidade requintada é “a minha cantina”. É rara a semana que não vá lá jantar. Mas não voltaria a referência tão imediata não fosse obrigatório deixar aqui uma ode ao Menu de Outubro.

Fiel ao velho ditado popular de que tristezas não pagam dívidas, escapei à tortura da via sacra entre o Terreiro do Paço e São Bento de um Orçamento de Estado fora de prazo que tem de ser aprovado a-todo-o-custo e fugi para a Sintra do Eça, que há mais de 100 anos, já dizia que isto não é um país mas um sítio mal frequentado. “ Nada há de mais ruidoso, e que mais vivamente se saracoteie com um brilho de lantejoulas - do que a política” dizia ainda o nosso clarividente Eça de Queiróz.

Com o estômago embrulhado nestas reflexões, fui para a mesa, para o lugar dos risos.  Um pedaço de atum braseado numa cama de alfaces é o primeiro mimo que me chega da cozinha. Simples, delicado. Pressinto grandes alegrias e não me enganei.

Esqueço as contas, os impostos  e o FMI e embalo na suavidade do creme de castanhas e funcho com azeite de trufa. Os fiapos do bulbo de funcho a pontuar o aveludado com o sabor que lhe é caracteristico de erva-doce, mas a surgir aqui suave, ligeiramente adocicado. Pura volupia com o fio de azeite de trufas. Deslumbrante! A pedir para parar o tempo e reter o sabor na boca. Para partilhar o trono, os pergaminhos de um Kopke branco 40 anos. Não há dúvida, a vida só quer que sejamos felizes.
De alma lavada, parto para a corvina salteada com puré de aipo e caviar de beringela. O peixe bem tratado, o caviar de beringela a mostrar bom tempero, o puré de aipo, sedoso, espevitado com amendoas partidas. Perfeita alquimia. A ligar bem o Torais Branco 2009.

Na minha lista de ais e uis conto ainda com asa de pato confitada com estufado de lentilhas. U-lá-lá!!! Duas asinhas a derreterem-se na boca, as lentilhas macias, o estufado a demonstrar bom porte pontuado por sabores de morcela. Ligação muito bem comportada a despertar várias exclamações, acentuadas pelo Quinta da Sequeira Grande Escolha 2005. Um tinto a mostrar garra.

Confortada com os sacramentos da santa madre cozinha, há espaço para uma tarte de limão desconstruida a cativar os cinco sentidos. Suave, leve, doce q.b. Bem inspirada na companha de um Vista Alegre Tawny 20 anos.

Na quietude do prazer, sobra ainda a imagem que entra pela janela e volto ao Eça: “as duas chaminés colossais, disformes, resumindo tudo, como se essa residência fosse toda ela uma cozinha talhada às proporções de uma gula de rei que cada dia come todo um rei”. Fica a esperança que as anunciadas medidas draconianas ainda nos deixem uns trocados nos bolsos para um prato de lentilhas.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Gspot – A poesia na cozinha ou como pequeno pode ser igual a grande



O restaurante é pequeno? É.

É simples? Também.

E a cozinha é ainda mais minúscula, mas grandiosa na criatividade de João Sá e André Simões. Uma dupla de jovens que se diverte a construir ligações entre ingredientes e entre estes e o vinho criteriosamente escolhido pelo escanção Manuel Moreira. Resulta sempre? Nem sempre, mas quase sempre! Junto a este trio, a eficácia do serviço é garantida pelo chefe de sala Giscard. Brasileiro rendido a Portugal,que procura, com mestria, acarinhar e interpretar a vontade e gosto dos clientes, sem perturbar o ambiente intimista e acolhedor.

Já me vi em Paris, num restaurante estrelado, a desejar estar sentada a uma das mesas deste Gspot. Já regressei do Algarve, a alta velocidade, com saudades de jantar em Sintra, apesar do agrado com que aprecio a alta cozinha de alguns restaurantes algarvios.

O que é que o Gsopt tem para me fazer sempre esta vontade de voltar...todas as semanas?

A excelência da simplicidade. A irreverência e a criatividade. O risco. A ousadia e a descoberta.

Quantas e quantas vezes um sorriso de orelha a orelha procura que eu descubra como um banal produto recolhido de uma prateleira de supermercado é transformado num pitéu e faz a diferença no prato que está à minha frente! Quantas e quantas vezes, um copo à temperatura correcta me esconde previamente  o rótulo da garrafa para me dar à prova cega um vinho acessível ou um vinho menos conhecido... ou de outras origens, da Austrália, França, Itália ou Hungria. Tantas e tantas vezes, vinhos que desprezaria mas que os créditos de Manuel Moreira tornam perfeitos na ligação com os pratos. O meu palato bate palmas e entre o branco e tinto, a minha opção é, invariavelmente, a do vinho a copo, para seguir o menu de degustação.

Até há bem pouco tempo, o menu, de 4 pratos e amuse bouche, mudava todas as semanas. Essa vertigem deu agora lugar a uma rotação mais lenta e a uma carta consolidada numa oferta mais permanente. Dá maior flexibilidade, dizem-me.  Permite optar por uma refeição mais simples, à carta; ou, com base na carta, os clientes residentes podem construir o seu próprio menu.

Foi o que me aconteceu na última sexta-feira. Noite de chuva. Ainda assim não temi o IC-19. Será penoso para quem tem de o percorrer todos os dias, mas o facto é que, dois acidentes e, meia hora depois, estava abrigada do temporal. Demoro bem mais se tentar ir ao Bairro Alto ou a Santos, arriscando-me a mais três quartos de hora para encontrar um qualquer lugar manhoso para estacionar o carro.

Aqui, chegada a Sintra pelo Arco do Ramalhão, vencidas as curvas e contra curvas da tradicional e clássica entrada, viro obrigatoriamente à esquerda e logo à direita por uma ruela que vai dar à Biblioteca. Com o miradouro de frente, esquerda e... lugar à porta! Nem preciso de abrir o chapéu de chuva.

Sou de imediato brindada com um espumante da  Qta do Valdoeiro Baga/Arinto. Faz companhia, pouco depois, a um paté de pato com compota de frutos silvestres e crumble de broa. Um amuse buche cristão a combinar com este outono invernoso.

Antes, já tinha proibido o Giscard de trazer para a mesa o cesto de pãezinhos tentadores, quentinhos, a pedirem para serem demolhados no azeite ou barrados na manteiga de ervas. Assim não me zango com a balança e ganho espaço no estômago para o menu alternativo, cuja composição deixo ao critério do João e do André, já que o menu de degustação em vigor tinha sido provado e aprovado no jantar anterior. Tento preservar o mistério, que sinto ter perdido um pouco, com esta evolução no conceito agora adoptado de menu mensal. Gosto da surpresa à mesa, de não saber o que vou comer, de não ter que olhar para uma carta e escolher e, uma das vantagens de ser “cliente da casa”, é, aqui, já saberem do que gosto e não gosto. Sabem que não vale a pena vir para o meu prato, por exemplo, sardinha ou cavala, cabrito ou borrego. Vade retrum!!!

Liberta desse risco, entrego-me, então, à inspiração da dupla. Lombo de bacalhau confitado com gaufre de batata-doce e compota de tomate. Oh, deuses! E a gaufre a apresentar-se ainda com um derretido de queijo da serra. Uma combinação excelente com o bacalhau a provar ter sido sujeito a boa demolha e a um confitado perfeito. Irresistível. Merece entrar para a galeria dos clássicos desta season. Quinta de Melgaço, um Alvarinho de 2009, revela um bom compromisso para o prazer do prato.
Seguem-se uns rolinhos de linguado com canneloni de caldeirada. Sem o creme de coentros que consta na descrição da carta. Ainda assim, uma composição interessante. O peixinho no ponto, sabor suave, a deixar que o recheio dos canneloni se imponha. A harmonia vinica fez-se com um tinto do Alentejo, o Herdade Torais, 2007.

Do açouguinho veio o cachaço de Porco Ibérico estufado com puré de maçã e espargos. Ao nível do Clos L’obac 2004 Priorat que chegou no copo.
Suculenta, a carne. Gulosa, tal como o vinho da Catalunha. O puré com um perlimpimpim de caril a fazer vibrar o conjunto. Os espargos numa textura irrepreensível. A merecer vários olés!!! E foi a muito custo que deixei um naco no prato para ainda ter espaço para a sobremesa que vinha a seguir.

Migas de chocolate com transparência de Manchego, sorvete de manjericão e laranja confitada. Nham-nham!!! Rendo-me completamente à ligação do chocolate com o queijo. Migas ricas que, nesta versão, não se poupa no chocolate. O sorvete e a laranja fazem o par ideal. Muito feliz.
Cereja no bolo, sou confrontada com um colheita tardia tinto, da herdade de S. Miguel. Não é engano, não senhora, colheita tardia...tinto. Muito interessante! É mais uma descoberta...Já tinha ouvido falar do Alcubíssimo, da zona de Azeitão, mas nunca provei. Este, da Herdade de São Miguel, foi um ensaio e não vai ser lançado no mercado. Pena, mas pode ser que, para o próximo ano, Alexandre Relvas se aventure.

São as pitadas de ousadia que fazem a diferença entre o bom, o magnifico ou o sublime. Na cozinha, assim como na garrafeira do Gsopt, nem tudo é magnífico, nem tudo é sublime, mas é sempre bom.

E se alguma coisa correr menos bem, falem com o João ou com o André e voltem na semana seguinte. Vão ver como eles reconhecem e aprendem com os erros e, com modéstia agradecida, lhe demonstram o que os faz, todos os dias, meter a colher no tacho...

Gspot
Alameda dos Combatentes da Grande Guerra Nº 12  
2710-426 Sintra
Tm +351927508027

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A Travessa – Cozinha de ouro em serviço de prata


Classico. Familiar, mas cosmopolita. Um espaço grande, mas acolhedor onde, no Verão, há ainda a acrescentar a esplanada nos claustros do Convento das Bernardas.

Logo à entrada, o imponente forno a lenha empresta a ideia de se estar a chegar a uma casa de familia. A sala, pontuada com mesas de jantar familiares, os espelhos e  os castiçais, prolonga essa imagem. Simplicidade requintada.

Um restaurante onde se volta sempre e que, já se sabe, é sinónimo de comer bem. E há muitos anos que é assim.

A dificuldade de estacionamento é resolvida com o “pão de forma”.  Pode  deixar-se  o carro no parque de estacionamento do Largo de Santos, telefonar para o restaurante, indicar a reserva e poucos minutos depois temos disponível uma velhinha carrinha Citroën de colecção, bicolor, branca e vermelha, daquelas que marcou a geração “love and peace”,  e que nos leva para a Rua das Trinas.

A afabilidade e simpatia com que somos  brindados à chegada são naturais, sem aqueles gestos e palavras postiças que se aprendem na escola de hotelaria tão em moda na restauração de hoje.

Antes de nos darem acesso à carta, somos presenteados com vários petiscos. O cortejo começou com uns apetitosos ovos mexidos com espargos selvagens, molhadinhos, a mostrarem logo ali que há boa mão na cozinha. Os ovos em bocados grandes, o sabor dos espargos lá, mas a verem-se pouco. Uns pimentos de Padròn que só pecam por virem contados: um(!!!) por pessoa. Crocante de queijo de cabra panado com doce de abóbora. O polme perfeito. A beneficiar na ligação com a compota. Tostinhas com pasta de azeitonas e uns vulgares camarões pequenos, somente o miolo, que não se fizeram convidados. E o pão, senhores, o pão!!! Fatias de pão alentejano, guloso, irresistivel!!! Para embeber em azeite.

Há ainda os secretos de porco preto. Apresentam-se à mesa em peça inteira, de onde saiem finas fatias cortadas à nossa frente. Deliciosas fatias. Na lista dos mimos, contou-se também com ostras, de origem não revelada. Passei, que não sou amiga de ostras, mas quem na mesa provou, aprovou.

Nesta altura, já as opções para o jantar tinham sido apresentadas e as decisões tomadas. Mas, talvez para aconchegar estomagos mais famintos, ou fazer juz à velha tradição gastronómica portuguesa, ainda veio a sopa. Uma taça de creme de ervilhas. O creme concentrado num aveludado sem reparos, pontuado por uma mancha de natas.

Virada para o peixe, desprezei o Foie Gras de Pato ou o Lombo de Vitela com Échalottes ou, ainda, o Medalhão de Veado, além dos vários bifes do lombo.

Entre o polvo, a corvina para grelhar e os filetes de peixe galo com molho de champanhe, optei pelo “Saint-Pierre”. Um peixe feíssimo, mas que fornece a carne mais adequada para filetes. Que, não desiludiram. Bom polme e o molho de champanhe a dar um toque agridoce. Correcto. Não deslumbra mas conforta e deixa o palato feliz.

Para acompanhamentos, a oferta é extensa e já um clássico nesta Travessa: legumes, puré de nabo, esparregado de nabiça ou espinafres, batata chip caseira. São os acompanhamentos tradicionais. Vêm todos de uma assentada para a mesa, permitindo assim conjugar as opções com os gostos e com o prato escolhido.

De uma extensa e aprumada carta de vinhos, fomos para o Dão. O Quinta de Carvalhais Encruzado, um branco intenso, mas macio, elegante, a combinar bem com o espaço e a comida.

Dos doces não posso falar porque, mais uma vez, não consegui chegar à sobremesa, por culpa das delicadezas de entrada.

Não é barato, mas é bom. Uma cozinha consistente. Confortável. Não engana.

50/60€ por pessoa
A Travessa
Travessa do Convento das Bernardas, 12