“O prazer da comida é o único que, desfrutado com moderação, não acaba por cansar”

Brillat-Savarin


quinta-feira, 30 de agosto de 2012

“Due son gli corni!”


Por estes dias, assim que “aterrei” no Algarve, fui a correr para o Evaristo. Arrastei comigo uma amiga, nada dada a ambientes populares ou ruidosos, mas as saudades do peixe do Atlântico falaram mais alto.

Azar o nosso, a noite foi particularmente barulhenta. Sorte a nossa, porém, é que, à boa maneira lusitana, as turmas de casais mais os filhos, e os filhos dos amigos, gostam muito de comer depois das 10 da noite, quando já estava eu quase a terminar de apreciar uns carabineiros bem tratados, umas lulas soberbas, imperdíveis, tal a frescura e tempero com que se apresentaram, e um cantaril que, entre o mar e o prato, passou de forma sublime pela grelha.

Serviço gentil, correcto e discreto, supereficiente, como se exige e se espera. Tudo bom, menos o ambiente “tascoso”, imposto pela afluência simultânea de grupos e que me fez fugir dali assim que terminou o jantar. Bem diferente de uma outra noite, também recente, em Viareggio, Itália.

Restaurante junto ao porto, paredes meias com os estaleiros de onde saem os iates de renome que se balanceiam por esses mares fora.

“Trattoria Da Cícero”, assim se chama o restaurante onde o peixe também é absoluto protagonista. O peixe e o dono: homem de fartos bigotes e barriga bem ao estilo do Obelix. Duas salas em azul clarinho, com a cozinha à vista e o peixe em bancada.

Avaliava-se a escolha de uns lagostins, para entreter o estomago, enquanto se pedia um fresquíssimo besugo, que se apresentou em forma de caldereta. Avaliação reservada aos homens do grupo que, gentis e a pensarem na silhueta das senhoras, se preparavam para pedir apenas dois lagostins por prato.

“Due? Due son gli corni!” – replicou em voz grossa o Obelix, a fazer contas à caixa registadora. É certo que acompanhou a expressão com o gesto, de indicador e mindinho alçados, mas foi de uma elegância e simpatia desarmantes. Seja!

E chegaram à mesa, não dois, mas três lagostins por dose, frescura realçada pela simplicidade da cozedura ao vapor. Sem mais. Os homens foram perdoados e o Obelix também.

Enquanto esperava pelos bichos, não resisti à cesta do pão. Provei e aprovei a focaccia; ainda assim, para tristeza de uma das minhas queridas amigas, foi à chapata que me rendi e onde me perdi. Crocante e a pedir lambuzuras com a manteiga. Due son gli corni? Quais dois! Três, quatro…perdi a conta aos pedaços de pão!

Serviço simpático e atento, renovou a cesta do pão. Ambiente fresco. O requinte informal sem paralelo nas marisqueiras de Lisboa. O Trio de lagostins denunciou a qualidade da cozinha, confirmada a seguir pelos lombos de besugo servidos “em cama” de batatas, a chorarem para serem devoradas!

Não pensava então trazer o registo ao blog, por isso não ficaram as provas gravadas em imagens. Scusami!

Por razões diferentes, mas também justificadas, não sobraram fotos de uma outra soberba refeição. Desta vez, ao almoço, em Capraia. Uma antiga ilha prisão. “La Garitta”, restaurante junto ao Castelo, a obrigar a uma íngreme caminhada de vários quilómetros, mas que vale todos os passos.

 
Provei a carbonara di mare, com uma brunesa de lulas e polvo ligeiramente refogados e uma pitada de natas só para conferir untuosidade (aprendam oh, pseudo restaurantes italianos que se ostentam em Lisboa, e que apresentam as massas a nadar em natas!!!). Sabores suaves; e, sem esforço, rendo-me aos multiplicados elogios que foram surgindo dos vários lados da mesa. Não ficou massinha para fazer apodrecer a história.

E se os elogios pareciam esgotados na carbonara, não faltaram os aaahs e oooohs, nham-nham nas lulas que se apresentaram a seguir. E lulas!!!...

 
Que lulas!!! Ainda assim, reconheço, nas memórias deste verão, ficam a ganhar as do Evaristo! Memórias de sonho e encanto que não cabem partilhar aqui.

Volto a Capraia e ao La Garitta. Serviço simples e um restaurante aberto expressamente para o grupo de portugueses onde me incluía, o dono acordou no mar para pescar a corvina que horas depois cozinhou divinamente em frigideira, num molho temperado de manteiga e azeite, aromatizado com alho e salsa. O peixe bem tratado, sem trair a frescura. O molho, de uma inultrapassável leveza, a realçar a textura do peixe.

Mais uma prova de que a elegância se faz da simplicidade dos sabores e…dos gestos! O serviço a combinar com a cozinha, num restaurante de ambiente familiar de uma ilha recôndita do Mediterrâneo.

 
Não é preciso mais. Especialmente quando o mais se resume a um pretensiosismo decadente, rendido aos rublos dos russos, novos ricos que empestam os lugares míticos do glamour que fez a história da Europa.

“Não têm maneiras, mas são os únicos que compram” – reconhecem, entredentes, italianos e franceses, também eles agarrados pela crise que ameaça o euro. Pois!


E a frequência de hoje do Splendido, o hotel que faz o bilhete postal de Porto Fino e que guarda memórias de deslumbramento, não será assim tão exigente como a do passado. La Terrazza, o restaurante anfiteatro do hotel, guarda as vistas de sempre, mas perde na cozinha e no serviço para outros restaurantes bem mais modestos.

 
 
Lá fui, também, dizer presente e apreciar o Mediterrâneo numa noite quente. O mesmo grupo de seis pessoas à mesa. Todos incomodados pelo pianista “ali tão em cima”. Música que abafa conversa não serve de companhia, que a mesa latina reclama convívio!!!

Amuse bouche resumido a um puré de batata, que chegou frio, a servir de cama a “caviar”, falso, de nero. Industrial. Provei e rejeitei, pois claro, que é preciso guardar as calorias para melhores sabores.

A minestroni, em receita genovesa – tipo colher em pé –, terá convencido quem pediu.


O meu carpaccio também passou no exame, ainda que tenha colocado reticências às placas de queijo, preferindo a clássica versão em lascas finas. Já agora, também teria preferido a carne mais fina… Grazie mille!

 
Teria sido pedir de mais, numa cozinha atabalhoada com um serviço que se revelou a condizer. Grelhada mista para quatro, que dois dos comensais, em boa hora, se refugiaram num pregado, creio. O pregado terá cumprido a função, ainda que à vista desarmada se tenha apresentado com azeitonas a mais.

O pior mesmo ocorreu com a grelhada. Dois de nós servidos com peixe espada, atum, lula e gamba; os outros dois ficaram de prato vazio. O desconforto da espera. O peixe a arrefecer e a surpresa tardia de a dose seguinte não corresponder ao mesmo numerário.

Não foi necessária chamada de atenção. Para compensar, vieram de acrescento mais três camarões grelhados por dose. Fraco consolo! Bichos magros e palhentos, desenxabidos, tal como os restantes peixes, que secaram na grelha! Madonna! Como è possibile?

Cozinha e serviço não condizem com as vistas, nem com a carteira.

 
 
Desconcertante foi também o serviço de um outro restaurante, este já em terras gaulesas. A Hostellerie Jérôme, um pequeno hotel de charme, situado num antigo mosteiro, em La Turbie, uma pequena aldeia medieval, ao cimo do Mónaco. Duas estrelas Michelin que se perderam entre a cozinha e a sala.


Aqui, éramos quatro à mesa. Mal nos sentámos e nem nos deram tempo para consultarmos a carta, ou sequer pedir o vinho. O amuse bouche foi despejado na mesa sem grandes explicações: sticks folhados com  mousse de beringela e mousse de salsa; gaspacho de tomate com sorbet de aipo. Num acerto de contas com o desgarrado serviço, os sabores, bons, mas também eles desgarrados.

 

Camarões em maracujá, com folhas de coração de alface e amêndoa crua. Boa harmonia e suavidade.

Medalhões de lagosta azul com creme de limão, lâminas de pêssego, flor de beringela e louro frito. Bom. Excelente.

 

Salmonete com alho assado e alcachofras salteadas. Muito bom.


 

Pombo assado com cepes e cantarelos, fígados, azeitonas e foie gras fresco. De ir aos céus e evitar ir para cima da balança. Harmonia de sabores quente, numa noite a reclamar frescura, mas numa conjugação perfeita.


Morangos do bosque com chantilly. Reposta a frescura que se pedia.


Sorbet de ruibarbo com zestos de laranja. Adoro ruibarbo, que para mim é sinónimo de legume de sobremesa, claro! Cá em casa, há o hábito do soufflé de ruibarbo. Continuo a achar que é a melhor forma de apresentar este caule. Ainda assim, o sorbet funcionou bem como digestivo. Tê-lo-ia preferido como separador ou pré-sobremesa. Mas…chef manda! Ou terá sido o serviço?

 

Finalmente, mignardises que valem por sobremesa!

 

As queixas ficam em crédito, que sobra a vontade de voltar. Sobretudo pela companhia e pelos amigos, que a mesa lusa faz-se de sabores mas, sobretudo, de…”combibio”!


Já no regresso a Portugal, em dia de passagem por Lisboa, paragem num japonês, onde já não ia há muito tempo. E “quem não aparece, esquece”. O ditado popular faz-se valer, neste Sushi Café, das Amoreiras. É que aqui, faz a diferença “ser da casa” e não um penetra.

Mas, num domingo à noite, em pleno Agosto, não sobra grande escolha para quem reclama por peixinho cru! Em boa hora. Serviço competente a revelar-se muito preocupado com qualquer falha…que não teve!

- “Desculpem-me, mas ainda estou em estágio!”, justificava-se o diligente empregado, que na conversa revela ser um recém licenciado em…Arquitectura, ansiando por uma colocação…no estrangeiro!. Gestos educados e delicados.

- “Sr Arquitecto - digo-lho eu - passou no estágio, e deu cartas a muitos profissionais do sector!!!”.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Duas estrelas Michelin em português

Há um manto de silêncio e eu não entendo a clandestinidade a que os críticos de gastronomia votam o nome de Sérgio Vieira.
Conquistou este ano – e é o primeiro chef português a consegui-lo - duas estrelas Minchelin. Duas estrelas em França! Poucos se deram conta disso. Soube da noticia por um outro grande chef, o Nuno Diniz que me confessou a estranheza pela imprensa portuguesa e os blogues da especialidade, não fazerem nenhuma referência ao feito.
Descendente de pais portugueses, Sérgio Vieira, assina e dá pelo nome de Serge. Vive e trabalha no sul de França. Em 2005 venceu o prestigiado concurso "Bocuse d'Or". No ano passado, conseguiu saborear a primeira estrela e, não demorou a obter as duas estrelas no restaurante que abriu com o seu próprio nome, um castelo em Chaudes Aigues.

Não conheço o restaurante, nem a cozinha de Sérgio Vieira, mas fico a salivar com a descrição feita pelo Nuno Diniz aqui


Assim que o Sr. Primeiro-Ministro decretar o fim da crise, esta pobre portuguesa promete  lá ir para conferir o sucesso da culinária em dupla nacionalidade de Serge/Sérgio Vieira.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Claro! – Uma cozinha de exclamações…


"Non... rien de rien...
Non... je ne regrette rien
Car ma vie, car mes joies,
Aujourd'hui, ça commence avec toi!"

Não conheço Victor Claro. Não cheguei a ir ao Albatroz, muito menos à Malhadinha.

Um dia, registo o desafio deixado em mensagem no FacebooK: “ não quer vir ao meu novo restaurante?”

Seria mais um dos muitos convites que entram na minha “piquena” lista de “está-bem-quando-puder”, não fosse o caso do restaurante ser um espaço que me é querido.

Há muitos anos que lá não ia, já que eu fujo da decadência como o diabo da cruz…

Mas o convite, feito desafio, e a vontade que eu tinha de conhecer a cozinha de Victor Claro, falaram mais alto. Por que não? Não vou à espera de recriar o clássico, mas bem feito, tornedó com molho de mostarda, palmitos e batatas fritas que, invariavelmente, comia, já lá vão muitos anos. Não, não espero nem procuro um regresso ao passado.

Quero ser surpreendida. E espero ser surpreendida. É, na maioria das vezes, a razão que me leva, nos dias que correm, a trocar o jantar caseiro pelo restaurante.

E é o que faço numa destas noites de sexta-feira. Ala que se faz tarde: marginal fora, a aproveitar uma noite fria. mas límpida. Do rádio do carro, salta a voz de Edith Piaf: ”Non, rien de rien. Non, je ne regrette rien” …

Antes de Paço de Arcos, viro à direita, para entrar no estacionamento do Hotel Sol Palmeiras, um antigo palacete frente ao mar.

Victor Claro pegou no La Cocagne, mudou-lhe o nome, baptizando-o com a força do próprio apelido, e fez o restaurante ressurgir das cinzas.

A cozinha é simplicidade, onde a qualidade dos produtos se une ao bem-fazer. É o que encontro neste restaurante de Victor Claro. Arte, numa cozinha bonita.

Victor recebe-nos na antecâmara do restaurante, uma generosa zona de espera e não aqueles minúsculos espaços que só existem para compor a decoração. Encaminha-nos à mesa, na varanda fechada, com vista para o mar.

A primeira grande dúvida de sempre é que  vinho escolher, dúvida de imediato resolvida, com a proposta - Posso trazer o meu vinho? A pergunta tímida do chefe, sem esconder um indisfarçável orgulho.

Orgulhoso do seu vinho e com toda a razão. Dominó Branco 2010. Um vinho de autor que a Niepoort Projectos acolheu. Victor Claro comprou a produção inteira de uma pequena vinha velha, na Serra de São Mamede, e a Niepoort aceitou produzir. Aromático, fresco. Faz uma excelente ligação com grande parte da refeição.



Conseguido o primeiro prazer inesperado da noite, os meus olhos ficam presos a uma cesta de pão. O miolo macio e húmido, com largos alvéolos e côdea tostada, bem crocante. Guloso. Uma fatia não vê outra. Não sobra migalha para acompanhar o paté de porco que chega à mesa, também ele de chorar por mais. 


Fico a saber que o pão, rústico, é feito no restaurante. Simples, esclarece-me o chefe: água, farinha e fermento. Parece, de facto, simples. Mas sei, por experiência própria, que não é tão fácil quanto parece. Faço vénias.

Ostras com maçã e maracujá. Azar o meu. Na lista do que não gosto, esqueci-me das ostras! Penitencio-me, obrigando-me a “engolir” uma. Fresquíssima, reconheço. Abençoado maracujá!  As restantes, aproveitando uma distracção do chefe, desaparecem no prato da frente com olhinhos de felicidade.

Percebo que o chefe se divide entre a cozinha e a sala. Empresta um tom intimista, estilo "a-minha-mesa", sem pretensões, mas...com alma! Disponível para explicar, aberto a conversar quando chamado a isso.

Segue-se a sopa de peixe – atum em cubinhos num consommé transparente, brunesa de cenoura e um ravioli de mexilhão com mint jelly, que o chefe recomenda que se coma no fim.

Mint jelly é uma geleia de hortelã-pimenta, uma tradicional compota que se usa na cozinha indiana. Açúcar, menta e vinagre branco. Uma fresca explosão.

Hora dos legumes. Um puré com couve flor e aipo e um toque de trufa em farrapos.  A mais valia da trufa a revelar-se quase só no efeito visual.

Ravioli com beterraba. Com óleo de sementes de abóbora.












Vitor Claro a colocar em prática o conceito de um prato em dois actos.

Voltamos ao peixe. Cachucho em caldo de marisco, com burriés, ostra e juliana de pepino. O peixe cozinhado em vácuo. Fresquíssimo. Mais uma vez, às escondidas do chefe, a ostra "voa" para o agradecido prato da frente. Posso apreciar o resto do prato...sem constrangimentos!


"Chega de frescura!"...com todos os elogios, é claro, mas a noite pede mais calor. E como resistir a um Colares de 69 para fazer companhia à barriga de porco preto com camarão e noodles: massa de ovo em caldo de camarão, com molho de soja.


Divino! Adivinho que a balança vai cobrar...mas, não me arrependo do "pecado".

Por esta altura, o estômago já reclama e o chefe adivinha que a sobremesa deve surgir apenas como...um aconchego. Pêra com gorgonzola. Um clássico, sem reparos, a servir para terminar o vinho.


Uma carta de vinhos única, feita à medida dos sabores do chefe, com alguns Borgonhas, a confessada zona fascínio dos “vinhos a sério”.  E os Bordéus,  a servir de montra - um Latour 99 a 420 euros ou um Margaux 2002 a 360 euros.

Vinhos que nos fazem sonhar e salivar, mas numa mesa em frente reparo num jovem casal e no Prova Régia que escolhem para acompanhar a refeição. Claro! Porque não? Há momentos que valem por si...

Tchim-tchim!...