Mesmo os mais distraídos já terão notado que este blog não é de crítica gastronómica, que essa fica para os profissionais (já são poucos, infelizmente), mas de impressões e experiências à mesa. E estar à mesa, não são só sabores e cheiros. Em casa ou no restaurante, estar à mesa é o centro do universo.
Com essa permissa, uma ida a um restaurante é muito mais do que comer. É a companhia, são os ambientes, a localização, a decoração e muitos mais pequenos pormenores. São as histórias de que se fazem os momentos da vida. E sinto muitas vezes, nos relatos críticos dos restaurantes, a falta desse lado impressivo. Em nome do rigor descritivo com que se apresentam as cartas perdem-se os prazeres e as emoções.
Nunca mais esqueço o melhor prego que alguma vez comi numa pequena tasca em Ponta Delgada de que ingratamente não retive o nome. Nem o melhor goulash húngaro devorado tardiamente, num restaurante familiar em Nürburgring. Vou querer repetir a sopa de alcachofras com brioche folhado de cogumelos, divino clássico de Guy Savoy. Mas, cem anos que viva, também não vou esquecer, a história do gratinado de cebola, que uma noite me serviu de entrada para o jantar Alain Passard, no L’Arpège.
Tinha estado, na noite anterior, no Balzac de Pierre Gagnaire, onde, num ambiente caloroso, apreciei um memorável menu de degustação. Gagnaire veio à mesa no início. Afável, manteve uma breve conversa, gesto que me leva a pensar que, ao regressar à banca da cozinha, foi compondo cada um dos pratos, “fazendo o filme” de cada um dos clientes destinatários. Certo é que emprestou muita emoção a esse jantar. Emoção e...calorias, claro. Nove pratos depois, obriguei-me, na gélida noite, a percorrer a pé os 4 quilómetros que me distanciavam do hotel, mas ainda assim insuficientes para manter o equilibrio na balança.
Por isso, no dia seguinte, pedia-se parcimónia com o garfo. Feliz por a reserva dessa noite ser numa cozinha centrada nos vegetais, consulto a carta, obviamente sem acesso à sempre dolorosa coluna do lado direito. Não me lembro do prato principal, apenas que, de entrada, a minha escolha recaiu num Gratin d'oignon doux des Cévennes "Saint-André". Gratinado de cebolas doces de Cévennes. Um prato que, fico a saber mais tarde,fazia parte do almoço de domingo, em casa da avó de Alain Passard. Desta vez , era proposto com trufas pretas. Suave, mas vulgar.
É já no hotel que me sinto à beira de uma congestão. Espreito para a factura do jantar, abandonada em cima da cómoda, e não consigo conter uma horrorizada exclamação quando me fixo naquela parcela: cem euros?! Por meia cebola branca, cortada em rodelas quase transparentes, e duas finíssimas lascas de trufas?! Cem euros?!!!
“Mas não é uma cebola qualquer” – responde-me a voz que me consola, fazendo-me notar, em tom divertido, que cebolas de Cévennes e, ainda por cima "Saint-André", são produzidas numa zona de origem controlada e que era preciso contar com as trufas.
No dia seguinte, percorri meia cidade de Paris à procura das ditas cebolas de ouro. Depois de muitas tentativas, acabei por as descobrir, numa pequena mercearia, perto do Forum des Halles: 5, 90 euros...o quilo! Meses depois, já em Lisboa, no Continente: 2 euros e meio!!! E o prato foi reproduzido cá em casa, com grande sucesso! Com trufas e tudo...
Uma história que recupero, quando, um destes dias, descobri este caderno de receitas de cebolas de Cévennes.
Pena que o Continente tenha, entretanto, substituido as cebolas francesas por fornecimento espanhol. Continuam a ser cebolas doces...mas, não é a mesma coisa.
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