“O prazer da comida é o único que, desfrutado com moderação, não acaba por cansar”

Brillat-Savarin


terça-feira, 26 de abril de 2011

Feitoria – Com raízes e mérito


Já lá vão uns anitos. Tomei contacto, pela primeira vez, com a cozinha de José Cordeiro ainda ele estava em Amarante, na Casa da Calçada, restaurante de um soberbo hotel, bom destino para fim de semana.
E quando o conheci ainda não tinha a estrela Michelin. Mas já praticava uma cozinha imaginativa, embora com forte inspiração regional. Nunca mais esquecerei a bola de carnes  que me ofereceu durante um fim-de-semana de Páscoa que por lá passei.
Do Tâmega para o Tejo,  reencontro a arte e sabores de José Cordeiro no Feitoria, do Altis Belém. Há restaurantes de que se gosta mas, sabe-se lá porquê,  onde não se vai com frequência. É este o caso. Fui lá jantar pouco depois da inauguração e só voltei agora, num destes dias.
Reservei mesa para a esplanada, mas o tempo pregou-me a partida: em dia quente, a noite estava fresca.  E, claro, à chegada, dão-me logo nota de que estava preparada uma mesa dentro da sala. A opção seria minha.  Grrrr!!!! Não é justo!
Sentei-me com pouco apetite, mas com vontade de comer bem,  depois de ter estado no Peixe em Lisboa a assistir às apresentações dos chefes Pedro Lemos e George Mendes.

Apresentações de fazer crescer água na boca.
Apesar do sotaque cerrado do Porto, Pedro Lemos despertou-me a vontade de ir à invicta conhecer o seu restaurante
Cerejão com cogumelos e trufa de verão

Salmonete com molho de alho, rebentos de coentros e amores perfeitos


George Mendes, o português nova-iorquino do Aldea, com uma estrela Michelin, mostrou-se incansável e muito inspirado. Cinco pratos numa hora! Tudo muito bem explicadinho, mas sem shwo off, que a arte está na criação.
Gamba com alho francês queimado e mousse de corais

Raia com cogumelos Enoki

Percebes com espargos brancos

Risotto de Sapateira

Bacalhau a baixa temperatura com acelgas e alho fresco e espargos
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De caminho ...prova-daqui-prova-dali , entre bolachinhas, pãezinhos, enchidos e azeites, mais uns quantos vinhos, tinha passado grande parte da tarde a trabalhar para a balança! Faltava “comida de garfo”.  Sentar-me confortavelmente à mesa, num ambiente elegante e sossegado, para relaxar de uma semana trabalhosa.
E se o restaurante eleito  tinha que ser um cujo chefe não estivesse ocupado numa das tasquinhas do Peixe em Lisboa, o Feitoria, já com prometida carta de Primavera, reunia todos os critéritos de escolha para essa noite.
Ainda inconformada com a descida da temperatura noturna, procuro então agasalho para o ânimo.
Na carta, das entradas às sobremesas, todos os pratos têm a indicação do tempo de confecção, um detalhe pouco habitual que merece ser replicado.
Para mim, de entrada, uma salada de sapateira com notas citricas, funcho e coração de tomate.  Para o prato ao lado é pedido o presunto de porco alentejano, gema 63º c  e espargos verdes.
Enquanto espero os 12 minutos apontados , e não faço ideia se foram 12, 15 ou 18, que tinha mais com que me entreter do que consultar o relógio que não uso, chega à mesa uma fatia de pão branco e um quadradinho de foccacia para fazer companhia a uma deliciosa manteiga de ovelha. Só não aprovo a foccacia. Notava-se ainda,  no interior, o azeite com que tinha sido previamente regada,  mas nem assim se escondeu a secura da massa.
De amuse bouche,  apresenta-se um  naco de pargo em caldo de cogumelos. Simples, suave, equilibrado, embora o ponto de cocção da albumina tenha “empalhado” a textura do peixe.



Gozo a cadeira de braços, confortável. Passa no exame da avaliação o ambiente elegante , em tons de cobre e bronze, a madeira, as janelas rasgadas para o rio. Elegância também no copo. Refresco o paladar com um Herdade de Grous branco que vai servir e cumprir ao longo de toda a refeição. Bom aroma e bom corpo.
Sem pancadinhas de Molière, mas a merecerem aplauso, chegam as entradas. A sapateira apresenta-se desfiada, com um lombinho inteiro a um dos cantos. Em boa temperatura, sem o frio de frigorifico que, por vezes, se encontra por aí.
O presunto alentejano trás uma gema de ovo a baixa temperatura,  puré de batata “ratte”, espargos verdes salteados e pó de presunto, aqui numa versão quimica com efeito visual, mas sem nada acrescentar no sabor.  Uma composição interessante que vale pela matéria prima. O presunto, de origem certificada; a batata, a favorita dos chefes franceses, já que é considerada a melhor para fazer puré.

Serviço sempre vigilante, embora discreto, não deixa que os copos de vinho ou da água fiquem vazios.
Segue-se o prato principal.
Pregado com texturas de ervilhas e salpicão de Vinhais.

Salmonete com macarrão recheado de lavagante e cogumelos salteados

Um e outro, os peixes, no ponto certo e com a frescura que se impõe. Boa ligação a do pregado com as ervilhas e o salpicão. Irresístivel. Cheio de cor e sabor. O puré de ervilhas , intenso; as vagens e as “balas” de ervilhas a darem a textura pretendida. O salpicão, é rei. Gostoso.
Menos empolgante, mas bom também, o contraste de intensidades e de sabores do salmonete com o macarrão recheado de lavagante.
Não cheguei às sobremesas e ficou a faltar uma conversa com o chefe. José Cordeiro não veio às mesas. Uma prática introduzida pelos franceses que me agrada e que marca também a diferença entre uma cozinha anónima ou de autor. Peço desculpa pela comparação - se é que há lugar a pedido de desculpas - mas é a diferença entre um pronto a vestir e um alfaiate.
No jogo de palavras, recorro ao lugar comum para dizer que é uma benfeitoria, a cozinha de José Cordeiro. Madura, quase sem falhas. O serviço de sala a condizer. E não tem nada a ver com o Mensagem, do outro lado do edificio do mesmo hotel.
Partilham as vistas, só isso. Ali, o ambiente é informal, mais concorrido, e as refeições mais ligeiras, mas não consigo imaginar uma cozinha onde não há um moinho de pimenta.  No entanto, foi o que aconteceu , com um carpaccio de novilho. Foi também a última vez que lá fui almoçar. Peço o moinho da pimenta preta para retificar o carpaccio pobre de tempero  e... - ”não temos. Só pimenta já moída”. “Nenhum? Nem lá dentro, na cozinha? Daqueles simples, de plástico?”. Não!!!  A atribuição de dois garfos do Lisboa à Prova só pode ter sido um equívoco.
Este parentesis leva-me à “piquena” dúvida, que permanece nesta cabecinha loira: o que motivou, há uns anos, o guia Michelin a premiar José Cordeiro,  na Casa da Calçada e a deixá-lo  fora do estrelato, à beira Tejo?  Será que estar ou não integrado no grupo Relais Chateaux faz a diferença?
Dubito, ergo cogito, ergo sum.

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